A Tensão Entre Ciência e Religião: por que estamos direcionamento a atenção científica de forma equivocada
- Jorge Guerra Pires
- 22 de abr.
- 5 min de leitura

A relação entre ciência e religião sempre foi marcada por tensões. No entanto, ao longo do tempo, essas tensões não se limitam mais apenas a um debate teológico ou filosófico, mas reverberam de maneira direta na alocação de recursos científicos e no direcionamento de pesquisas. No Brasil e em diversas partes do mundo, essa relação começa a ser observada não apenas como uma oposição, mas como uma influência sutil que, muitas vezes, define o que se pesquisa, quanto se pesquisa e de que maneira os temas são tratados no campo científico.
Um dos exemplos mais evidentes dessa interferência é o foco das pesquisas na semelhança entre humanos e outros primatas. Embora a teoria da evolução, que demonstra a relação biológica entre humanos, macacos e chimpanzés, seja amplamente comprovada, a quantidade de pesquisa direcionada para esse tema supera a atenção dada a outros tópicos com paralelos igualmente significativos, como as relações entre diferentes espécies de felinos. A semelhança genética entre humanos e primatas é superior a 95%, enquanto entre gatos e leões, por exemplo, essa semelhança é de um percentual semelhante. No entanto, enquanto a pesquisa sobre a evolução humana segue sendo amplamente financiada e discutida, o mesmo não se pode dizer sobre outras comparações biológicas que poderiam oferecer insights igualmente valiosos.
Essa desproporção na alocação de recursos não é um acaso, mas sim um reflexo de como a ciência, embora supostamente objetiva, não está imune às pressões externas, especialmente as de natureza religiosa. A teoria da evolução, embora robusta e amplamente aceita no campo científico, continua sendo um ponto de discórdia em diversos círculos religiosos. O fato de que um número significativo de cristãos resiste a aceitar a evolução como um fato científico demonstra o impacto da religião na definição das prioridades de pesquisa. E essa pressão não se limita ao âmbito educacional, mas se estende ao financiamento e à atenção dedicados a certas áreas de estudo, fazendo com que, muitas vezes, as questões científicas sejam direcionadas por crenças religiosas mais do que pela objetividade científica.
Essa influencia é sutil, mas fica evidente quando olhamos o todo, fazemos um olhar de águia em como a ciência tem focado sua energia e tempo. O financiamento de pesquisa é sempre escasso, e altamente competitivo, e estamos vendo energia ser gasta não por questões de prioridade para a sociedade, mas claramente tendendo a conflitos entre religião e ciência.
Outro exemplo claro dessa influência é o recente movimento do Conselho Federal de Medicina (CFM), que decidiu investir em pesquisas sobre espiritualidade no contexto médico. Embora a espiritualidade seja um tema que merece análise e reflexão, a forma como ela está sendo tratada pode, potencialmente, levar a um viés nas pesquisas.
Se as questões espirituais forem exploradas sem o devido contraponto do ceticismo ou da abordagem científica rigorosa, poderemos estar diante de um campo de estudo amplamente enviesado, com grandes recursos financeiros sendo direcionados a validar crenças espirituais sem considerar outras abordagens alternativas. A escassez de recursos científicos, que sabemos ser um problema no mundo acadêmico, faz com que a pesquisa em certas áreas, quando mal direcionada, acabe sendo desproporcionalmente financiada, enquanto outras, mais focadas no ceticismo ou em explicações seculares, recebem pouca ou nenhuma atenção.
Esse direcionamento inadequado da pesquisa científica tem um impacto profundo não apenas no campo acadêmico, mas na sociedade como um todo. A ciência, por sua natureza, precisa de diversidade de abordagens e de uma constante autocrítica para que novas descobertas sejam feitas e teorias comprovadas ou refutadas. Quando os recursos são concentrados em apenas uma direção, com uma única narrativa sendo validada, o avanço do conhecimento científico fica prejudicado, e a sociedade perde a capacidade de fazer escolhas informadas.
O exemplo das pesquisas sobre a existência de figuras históricas, como Jesus Cristo, também ilustra essa desproporção. A quantidade de estudos e recursos dedicados a provar ou refutar a existência de Jesus supera amplamente o interesse dedicado a outras figuras históricas, como Sócrates. Embora ambas as figuras tenham tido um impacto profundo na cultura ocidental, a obsessão científica com a comprovação da existência de Jesus, muitas vezes em um contexto religioso que acaba se refletido no meio acadêmico, é um reflexo claro de como a religião influencia não apenas o pensamento das pessoas, mas também o direcionamento das pesquisas acadêmicas. Ao invés de tratar essas questões com a mesma objetividade científica com a qual lidamos com outras figuras históricas, cria-se uma verdadeira indústria de estudos religiosos que molda a percepção pública e acadêmica.
É necessário refletir sobre a alocação de recursos e a dinâmica de poder dentro do mundo acadêmico. A ciência, para ser verdadeiramente objetiva, precisa ser guiada pela busca incessante pelo conhecimento, e não pelas pressões externas que buscam validar crenças preexistentes. O financiamento das pesquisas deve ser uma escolha baseada em critérios científicos rigorosos e não nas crenças culturais ou religiosas dominantes.
O desafio que enfrentamos hoje é entender que, mesmo em um campo que se pretende objetivo, a ciência não está imune às influências externas. O direcionamento da pesquisa científica, especialmente em áreas como a biologia evolutiva e a espiritualidade, pode ser profundamente afetado por conflitos entre ciência e religião, que acabam moldando as prioridades de pesquisa e, consequentemente, o avanço do conhecimento. Não estou falando de deixar de pesquisar certas áreas, mas assegurar que o financiamento não seja influenciado por conflitos religiosos, que quando olhando o todo, estão influenciando como o tempo de cientistas é gasto. Isso acaba jogando para escanteio áreas como inteligência artificial (IA). A IA deve ser estudada extensivamente, especialmente, seu impacto na sociedade e como essas novas ferramentas podem ser integrada na sociedade de forma justa e produtiva.
Sobre o autor
Venho escrevendo e ensinando modelagem de sistemas biológicos para leigos desde o doutorado, onde lancei alguns cursos locais, na Universidade de L’Aquila, onde fiz meu mestrado e doutorado. Desde então, tenho alimentado um canal do YouTube, blogs e outras formas de disseminar conhecimento e discussões, com um forte enfoque online.
Recentemente, o que resultou na série “Inteligência Artificial, Democracia, e pensamento crítico”, eu decidi pegar essa experiência com o raciocino lógico e atacar problemas mundanos como religião e política. Comecei também a escrever sobre ateísmo. Isso nasceu da série “Ciência para Não Cientistas”. Essa série, que começa com o bolsonarismo, me deu uma base para pensar no ateísmo de forma sistêmica e rica.
Sou literalmente apaixonado por biologia, matemática, programação.
Possuo um doutorado pela Universidade de L’Aquila/Itália, reconhecido no Brasil pela Universidade de São Paulo (USP) em bioinformática. Fiz 2 pós-doutorados, um pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e outro pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Também fiz um mestrado duplo pela Universidade de L’Aquila e Técnica de Gdansk/Polônia; minha graduação é pela Universidade Federal de Ouro Preto em Engenharia de Produção.
Decidi fazer uma mudança de carreira: escritor e pesquisador independente. Essa escolha tem sido extremamente desafiadora, mas também recompensadora.
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