A ciência sem fomento e o divulgador à própria sorte: o caso Pirulla é o nosso espelho
- Jorge Guerra Pires
- há 7 horas
- 3 min de leitura
Recentemente, o divulgador científico Pirulla sofreu um AVC e precisou ser internado na UTI. A notícia, além do choque natural, revelou algo ainda mais alarmante: ele não tinha plano de saúde. Amigos e seguidores se mobilizaram em uma vaquinha e organizaram lives para manter seu canal ativo e monetizado. O objetivo é simples e brutal: evitar que o algoritmo do YouTube "mate" seu canal durante sua ausência. Pirulla não está apenas hospitalizado; ele está, como tantos outros, à mercê de um sistema que nunca se importou com quem pensa.
Isso é mais do que um caso individual. É um espelho. E o reflexo não é bonito.
O mito da meritocracia algorítmica
Durante anos, acreditamos que bastava produzir bom conteúdo, com rigor e didática, que o reconhecimento viria. Mas o caso Pirulla desmente isso. Ele é um dos maiores divulgadores de ciência do país, com um histórico respeitável de contribuição para o pensamento crítico no Brasil. E ainda assim, foi jogado numa UTI sem segurança alguma.
A ciência, no Brasil, ainda vive sob dois regimes igualmente cruéis:
O produtivismo acadêmico, que exige publicação incessante para manter bolsas instáveis.
O capitalismo de plataforma, onde o pensamento é transformado em produto e jogado aos leões do algoritmo.
O primeiro adoece. O segundo devora. Nenhum protege.
Escritores e divulgadores independentes: o vazio entre as instituições
Para quem está fora da universidade e do circuito de bolsas, como muitos escritores científicos e youtubers independentes, a situação é ainda pior. Não há nenhuma rede de apoio, nenhuma proteção social, nenhum fundo de emergência. E o que é pior: quando adoecemos ou silenciamos, o sistema esquece. A visibilidade é efêmera. A memória, descartável. O algoritmo não tem empatia.
É simbólico (e trágico) que a manutenção do canal de Pirulla dependa agora de lives feitas por amigos. É como se, além da vida, tivéssemos que lutar também contra o esquecimento digital. A inteligência virou um organismo que não pode parar de produzir, mesmo doente.
Falta de política pública para a ciência que alcança
Onde está o CNPq? Onde estão as universidades, os institutos de pesquisa, os ministérios? Onde está o reconhecimento institucional de que a ciência também se faz no YouTube, nos livros, nos podcasts, nos blogs?
A resposta é dura: não está. A ciência fora da torre de marfim é tratada como entretenimento, quando não como ameaça. Os poucos que ousam traduzir saberes para o grande público são ignorados, atacados, ou atirados à sorte.
O que precisamos dizer em voz alta
A verdade é simples: a inteligência está sendo precarizada no Brasil.
E isso não é só sobre Pirulla. É sobre todos nós. Sobre cada professor que trabalha sem contrato. Sobre cada autora que escreve sem editora. Sobre cada canal de ciência que luta para não ser engolido por danças, tretas e teorias da conspiração.
É também sobre como adoecer virou sinônimo de desaparecer. Sobre como não ter plano de saúde é regra, não exceçção. Sobre como, mesmo após anos de contribuição, a estrutura é tão frágil que qualquer imprevisto vira catástrofe.
Um chamado coletivo
É hora de cobrar do Estado uma política nacional de apoio à divulgação científica. De criar redes de proteção para divulgadores. De pensar em fundos solidários. De pressionar universidades a se articularem com esses produtores de saber fora da academia.
Porque se o conhecimento não circular, se não se comunicar, ele morre. E se quem comunica é tratado como descartável, quem morre é a democracia.
Enquanto o Brasil ignora seus divulgadores científicos, o algoritmo os consome e a doença os cala. É a inteligência brasileira entregue à roleta russa do acaso.
O caso Pirulla é urgente. Mas não é exceção. É regra. É espelho. E precisamos quebrá-lo antes que ele nos quebre a todos.