Retratação, Religião e o sistema de revisão por pares: funciona?
- Jorge Guerra Pires
- há 2 minutos
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A ciência se apresenta como um sistema objetivo de produção de conhecimento, mas a análise de um banco de dados massivo de artigos retratados, publicada pela Science, evidencia que a realidade é mais complexa. Retratações funcionam como uma espécie de “pena de morte” acadêmica, destruindo reputações e limitando futuras colaborações. No entanto, o sistema nem sempre pune erros metodológicos de forma equânime.
Um caso recente ilustra isso de maneira exemplar: dois artigos com problemas metodológicos comparáveis — um que elogia a religião e outro que a critica — receberam tratamentos distintos. Curiosamente, apenas o artigo crítico foi retratado, enquanto o que elogia a religião, que apresentava problemas claros de grupo controle e banco de dados enviesado, permaneceu publicado.
O estudo que elogia foi financiado pela Fundação Templeton, sugerindo que áreas sensíveis ou politicamente controversas podem ser mais severamente punidas, enquanto temas apoiados por interesses institucionais ou financeiros recebem proteção ou até recompensa. Esse padrão levanta questões profundas sobre a real eficácia do sistema de retratações e sobre até que ponto ele garante integridade científica ou apenas reforça prioridades externas.
Principais descobertas de What a massive database of retracted papers reveals about science publishing's ‘death penalty'
Autores proeminentes enfrentam maiores penalidades: Pesquisadores de destaque cujos trabalhos foram retratados por fraude ou má conduta tendem a sofrer penalidades mais severas, como menor número de citações subsequentes.
Impacto da retratação: A retratação de um artigo pode ser vista como uma "pena de morte" na carreira acadêmica do autor, afetando sua credibilidade e futuras colaborações.
Necessidade de supervisão editorial aprimorada: O estudo sugere que uma supervisão editorial mais rigorosa poderia prevenir a publicação de artigos fraudulentos ou com más condutas, em vez de depender exclusivamente da retratação posterior.
O mundo da pesquisa científica foi abalado em 2019 com a retratação de um artigo de grande impacto publicado por Jean Decety e colaboradores em 2015, na prestigiada revista Current Biology. O estudo original sugeria uma ligação negativa entre ser religioso e ser altruísta em crianças em diversos países, causando grande "barulho" na época.
No entanto, essa retratação, iniciada pelos próprios autores, levanta uma questão crucial sobre o funcionamento da ciência, especialmente quando lida com temas culturalmente sensíveis, como a religião e o comportamento social. O que esse caso, e sua comparação com outros estudos polêmicos, nos ensina sobre a eficácia da revisão por pares (peer review)?.
O Caso Decety: O Rigor Metodológico e a Autocorreção
O estudo de 2015 analisou mais de 1.100 crianças em seis países (Canadá, China, Jordânia, Turquia, Estados Unidos e África do Sul). A conclusão principal era que crianças de lares religiosos (cristãos e muçulmanos) eram menos generosas do que as de lares não religiosos, medida por uma tarefa chamada "jogo do ditador".
A retratação veio após uma crítica metodológica fundamental em 2016, que "minou a base das conclusões". O erro era estatístico: o estudo de Decety tratou a variável "país de origem" como se fosse um número numa escala contínua (tipo Canadá=1, China=2, etc.). O correto, metodologicamente, seria tratar o país como uma variável categórica – grupos distintos sem ordem entre eles – usando uma técnica chamada "efeitos fixos".
Quando os dados foram reanalisados com a correção, o efeito principal da afiliação religiosa (cristão/muçulmano versus não religioso) na generosidade simplesmente sumiu. A reanálise mostrou que as diferenças eram explicadas por grandes variações culturais ou de contexto entre os países, e não pela religião das crianças. Em 2019, Decety e a equipe reconheceram o erro publicamente, declarando que "O país de origem e não a religião era o que melhor explicava vários dos resultados".
Para alguns, este é um exemplo muito claro de como a ciência idealmente se corrige. O rigor no método e a transparência para corrigir os erros são vitais, e o processo científico demonstrou ser capaz de identificar e consertar suas falhas, mesmo após a publicação.
O Ponto de Tensão: A Assimetria de Escrutínio
Apesar de a correção técnica ter sido necessária e correta, o episódio levanta uma pergunta desconfortável: como um erro estatístico "relativamente básico" passou despercebido na revisão por pares inicial em uma revista de alto impacto?
Essa falha pode sinalizar o que algumas fontes chamam de assimetria epistêmica ou assimetria de escrutínio. A hipótese é que estudos com conclusões vistas como críticas à religião podem enfrentar um escrutínio "muito mais pesado" após a publicação. Isso aumenta a chance de falhas serem encontradas, levando à retratação, mesmo que o erro seja técnico.
Em contraste, o material fonte compara o caso Decety com o estudo de Shanahan e Van Der Will (2018), que relacionou a prática religiosa na adolescência a melhores resultados de saúde e bem-estar na vida adulta. Este estudo, cujas conclusões são vistas como favoráveis à religião, enfrenta múltiplas e sérias críticas metodológicas, mas permanece publicado e super citado.
O Contraste: Críticas Sérias vs. Retratação
As críticas ao estudo de Shanahan e Van Der Will são diversas e significativas:
Amostra Enviezada: A amostra é considerada muito específica e pouco representativa (predominantemente adolescentes brancos, filhos de enfermeiras nos EUA), comprometendo a validade externa.
Definições Confusas: Agrupamento de práticas distintas, como oração e meditação (que pode ser secular, como mindfulness), obscurecendo a interpretação.
Foco Seletivo e Omissão: O estudo foca em benefícios (como menor uso de maconha e maior satisfação com a vida), mas ignora completamente os potenciais custos sociais negativos da religião, como o reforço de preconceitos (contra grupos LGBTQIA+ ou mulheres) e a exclusão social. Essa omissão gera uma visão "distorcida" e "unilateral".
A diferença de destino entre os dois estudos é marcante: por que um estudo crítico à religião com um erro técnico específico e demonstrável na análise é retratado, enquanto um estudo favorável com "múltiplas e sérias críticas de métodos" sobre amostra, controle e medidas permanece intacto na literatura científica?.
Essa discrepância sugere que o mesmo nível de rigor crítico e as mesmas consequências (como a retratação) podem não estar sendo aplicados de forma igual em todo o campo. Existe a preocupação de que o sistema possa ter uma "tolerância maior a falhas metodológicas quando os resultados se alinham com narrativas culturalmente mais confortáveis ou positivas sobre a religião".
Conclusão: Um Processo Complexo e Imperfeito
Embora o erro no estudo Decety fosse tecnicamente central e invalidasse sua conclusão principal, justificando a retratação, o contexto maior nos convida a pensar criticamente. A retratação do estudo Decety, mesmo sendo necessária, pode "sem querer acabar reforçando a ideia de que descobertas científicas críticas à religião são por natureza mais propensas a erro".
O debate expõe as dificuldades inerentes à pesquisa observacional em ciências sociais. Não se trata apenas de corrigir os números, mas de questionar o próprio ambiente sociocultural em que a ciência da religião é produzida, avaliada e divulgada. O processo de revisão por pares, embora vital, pode não ser imune a falhas ou vieses inconscientes, especialmente em temas com fortes sensibilidades culturais e ideológicas envolvidas.
A análise do material fonte conclui que é fundamental abordar a relação entre religiosidade e comportamento social com extrema cautela, olhando tanto para o potencial benefício individual (como a redução no uso de maconha) quanto para o potencial custo coletivo e social (como o fomento à intolerância), que frequentemente é ignorado em pesquisas unilaterais.
A retratação do estudo de Jean Decety e colegas de 2015, apesar de ter sido um ato de autocorreção científica, foi motivada por um erro estatístico fundamental que invalidou diretamente a conclusão principal sobre a relação entre religião e altruísmo.
O erro técnico central residia na forma como a variável "país de origem" foi modelada na análise estatística original do estudo.
Detalhes do erro e seu impacto:
Modelagem Incorreta da Variável: O estudo de Decety tratou o país de origem como se fosse um número em uma escala contínua. Isso significa que os países (Canadá, China, Jordânia, Turquia, Estados Unidos e África do Sul) foram inseridos na análise como se tivessem uma ordem e distância lineares entre si (por exemplo, "eu a um Canadá dois China três e por aí vai").
Suposição Artificial: Ao modelar a variável de forma contínua, o estudo criou uma suposição artificial de ordem e distância entre as nações que simplesmente não existe. Isso implicava, erroneamente, que a diferença observada entre um país e outro no ranking da análise teria um significado linear, como se a diferença entre a Jordânia e a Turquia fosse a mesma que entre o Canadá e os Estados Unidos.
Distância e Distorção: Essa modelagem distorceu completamente a análise de como as diferenças reais entre esses contextos culturais e sociais se relacionavam com o comportamento altruísta das crianças. O correto metodologicamente, apontado pela análise crítica de Azim Shariff e outros em 2016, seria tratar o país como uma variável categórica (grupos distintos sem ordem) usando uma técnica chamada "efeitos fixos".
Invalidação da Conclusão Principal: Quando Shariff e a equipe reanalisaram os dados originais corrigindo o erro (tratando o país como variável categórica), o efeito principal da afiliação religiosa (ser cristão/muçulmano versus não religioso) na generosidade das crianças simplesmente sumiu.
Conclusão Correta: A reanálise mostrou que as diferenças de generosidade que haviam sido atribuídas à religião eram, na verdade, explicadas por grandes variações culturais ou de contexto entre os países. Diante disso, os próprios autores reconheceram o erro e declararam publicamente na nota de retratação em 2019 que "O país de origem e não a religião era o que melhor explicava vários dos resultados".
O erro foi considerado tecnicamente identificável e central, justificando a retratação porque invalidou a base das conclusões do artigo sobre a ligação negativa entre ser religioso e ser altruísta em crianças.
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