Quando esquecer é pensar: uma crítica ao alarme cognitivo sobre o uso do ChatGPT na escrita
- Jorge Guerra Pires
- 17 de dez.
- 4 min de leitura

Estudos recentes têm sugerido que o uso de sistemas de IA generativa, como o ChatGPT, durante a escrita estaria associado a menor ativação cerebral, menor retenção do conteúdo produzido e menor sensação subjetiva de autoria. A conclusão apresentada por alguns autores e divulgadores é alarmista: ao delegar a escrita, estaríamos “delegando o pensamento”, incorrendo em uma espécie de dívida cognitiva.
Esse diagnóstico, no entanto, parte de uma concepção estreita — e historicamente ingênua — do que significa pensar, escrever e aprender em contextos intelectuais maduros.
Este ensaio sustenta que tais estudos cometem três erros fundamentais:(1) confundem memória literal com compreensão conceitual;(2) interpretam o esquecimento e o distanciamento autoral como falhas, quando frequentemente são sinais de qualidade intelectual;(3) ignoram completamente o caráter colaborativo e distribuído da escrita científica contemporânea.
1. A falsa virtude de “lembrar o que se escreveu”
Uma premissa implícita nesses estudos é que um bom engajamento cognitivo se manifesta pela capacidade de lembrar, citar ou reconhecer trechos do próprio texto horas ou dias após a escrita. Essa suposição não resiste a um exame histórico, cognitivo ou epistemológico minimamente rigoroso.
A história da cultura escrita é, essencialmente, a história da externalização da memória. Desde a invenção da escrita — criticada por Platão justamente por “enfraquecer a memória” — passando pela imprensa, pelas calculadoras, pelos bancos de dados digitais e pelos motores de busca, o progresso intelectual humano sempre caminhou na direção oposta à memorização literal. Não lembramos números de telefone, não decoramos tábuas de multiplicação complexas, não memorizamos artigos científicos. E nada disso foi interpretado, seriamente, como empobrecimento cognitivo.
Na prática intelectual real, lembrar o texto nunca foi uma virtude central. A virtude está em lembrar o problema, a intuição, o argumento central — e, sobretudo, em ser capaz de reconstruí-los quando necessário. Um pesquisador que lembra frases, mas não consegue defender ou reformular suas ideias, não pensa bem; apenas memoriza.
Avaliar cognição a partir da lembrança literal do texto é aplicar uma métrica escolar a uma atividade adulta.
2. Perder-se na escrita não é falha — é método
Outro equívoco grave desses estudos é tratar o distanciamento subjetivo do texto — a sensação de que “não fui eu quem escreveu isso” — como sinal de desengajamento ou alienação cognitiva.
Na realidade, o oposto é frequentemente verdadeiro.
Autores experientes sabem que um texto só pode ser avaliado com rigor quando o autor se perde dele. Esquecer o contexto emocional da escrita, não reconhecer imediatamente as frases, reler como se fosse outro leitor — tudo isso são estratégias deliberadas de revisão intelectual. Muitos escritores e cientistas relatam que o momento em que um texto deixa de “soar como eles” é justamente quando ele começa a funcionar.
Esse estranhamento não é déficit de memória. É autonomia do texto. O texto deixa de depender do estado mental que o originou e passa a sustentar-se por sua própria estrutura, coerência e clareza. Um texto que exige que o autor se lembre do que “quis dizer” para funcionar é um texto fraco.
Paradoxalmente, os estudos que associam esquecimento a empobrecimento cognitivo acabam condenando como falha exatamente o estado que muitos autores reconhecem como critério de qualidade.
3. A cegueira em relação à escrita científica real
Talvez o erro mais grave dessas pesquisas seja a completa ignorância sobre como a escrita científica realmente acontece.
A maior parte da produção científica contemporânea é:
colaborativa,
distribuída no tempo,
fragmentada entre autores,
revisada e reescrita múltiplas vezes.
Em artigos com múltiplas autorias, é absolutamente normal — e esperado — que nenhum dos autores lembre exatamente o que escreveu, ou mesmo reconheça passagens específicas como “suas”. Se a falta de memória literal e a baixa sensação subjetiva de autoria fossem indicadores de déficit cognitivo, então a ciência moderna inteira estaria em colapso mental.
O que sustenta um artigo científico não é a memória de quem o escreveu, mas:
a rastreabilidade dos argumentos,
a clareza metodológica,
a possibilidade de reconstrução por terceiros.
Esses estudos, ao focarem em tarefas artificiais de escrita individual, sobre temas genéricos e sem aposta intelectual real, acabam avaliando algo que pouco se parece com a escrita científica ou intelectual no mundo real.
4. ChatGPT e o falso problema da delegação
Nada disso implica negar que o uso acrítico de IA possa ser problemático. Delegar tudo — pensamento, estrutura, decisão conceitual — é obviamente empobrecedor. Mas isso é um problema de uso, não de ferramenta.
Delegar a execução linguística, a linearização do texto ou a variação estilística não equivale a delegar pensamento. Na prática acadêmica, isso sempre foi feito: por editores, revisores, coautores, tradutores. A IA apenas torna esse processo mais visível — e mais rápido.
O erro desses estudos é não distinguir entre delegar a escrita e delegar a responsabilidade epistêmica. Essa distinção não é opcional; ela é central.
Conclusão: o esquecimento como sinal de maturidade intelectual
O verdadeiro problema desses estudos não é metodológico apenas; é conceitual. Eles partem de uma visão romântica e escolar da escrita, na qual pensar, escrever, lembrar e sentir autoria seriam uma única coisa. Essa visão não descreve como o conhecimento adulto é produzido.
Esquecer o texto, perder-se nele, não reconhecê-lo como “seu” — tudo isso pode ser não apenas normal, mas desejável. Em muitos casos, é sinal de que o texto superou o autor.
Ao tratar esses fenômenos como déficits, esses estudos não revelam um risco cognitivo da IA. Revelam, isso sim, uma nostalgia mal disfarçada por uma forma de pensar que nunca foi compatível com a prática intelectual madura.
Se há algo a temer, não é o esquecimento.É a incapacidade de reconstruir, criticar e sustentar o que se escreve.
E isso, curiosamente, esses estudos não medem.


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